sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Memento Mori



    Ele apontou a arma diretamente à minha testa. Encontrava-me uns 4 metros de distância dele, mas a arma era uma .44; ele só precisava apontar, apertar o gatinho e bum: minha cabeça se tornaria um pudim de tripas e massa cinzenta. 
    - Vamos - eu disse, fechando os olhos e dando um meio sorriso. - Atire.
    Percebi a hesitação quando não ouvi nenhum barulho e não senti minha mente quebrando em vários pedaços. Reabri os olhos e olhei para ele.
    - Vamos logo com isso. Você não disse que ia me matar? Atire!
    - Cala a boca! - ele gritou - Eu vou atirar em você se você não calar a boca!
    - Pensei que fosse atirar em mim independente do que...
    - Eu disse: CALA A BOCA!
    O rosto dele consistia de uma expressão de horror misturada com dúvida. Uma parte dele queria me matar, mas alguma outra parte fazia com que o dedo não pressionasse o gatilho.
    - Olha. Pode me matar, não precisa haver dúvidas sobre o que você quer realmente fazer.
    Ele arregalou os olhos, o braço que segurava a arma tremendo. Como não houve resposta dele ou mais um grito de "cala a boca, senão eu atiro", eu continuei.
    - Todos nós vamos morrer, eventualmente. É o preço de se viver, de se experimentar sensações diversas. De amar, de odiar. Viver é morrer, e eu já vinha me preparando para um momento como esse. No final, não importa se você matar meu corpo, pois ele é carne, e apodrece, e quebra e pode ser queimado com facilidade. Minha alma, minha mente, viverá eternamente naqueles que eu toquei, diretamente ou indiretamente. Pois é isso que importa no final: os laços feitos com as pessoas e em como você as ajudou durante seus tempos finitos e em como eles ajudaram outras pessoas e assim por diante. Então você pode atirar. Por mais que eu sinta minha morte e todos que eu conheça e tenha tocado também, quem mais vai senti-la será você.
    "Você nunca matou, não é mesmo? É, consigo ver isso de forma bastante clara em você, garoto. Está com medo da morte, como muitos de nós, mas não da mesma forma. Está com medo que você seja a própria morte de alguém e que carregue isso com você por mais tempo do que possa imaginar..."
    - CALA A BOCA! Você não sabe nada sobre mim!
   - Sei que você é jovem. Sei que você está segurando essa arma contra mim por motivos que nem você sabe, e, mesmo se souber, não são motivos seus. Nunca imaginou estar aqui, no meio da noite, roubando pessoas e chegando ao ponto de tirar suas vidas. Seu braço treme e você me manda calar a boca, mas seu dedo não aperta o gatilho nunca. E cada segundo que se passa, eu falo mais e torno esse momento mais traumático para você.
    "Deve ser uma sensação horrível conhecer alguém preparado para morrer, para deixar esse mundo, e você não estar preparado para fazer isso por essa pessoa."
    Seu semblante era de puro terror. Alguns segundos se passaram enquanto eu esperava ouvir o barulho da .44 sendo disparada, mas nada veio. Ele, um rapaz, por volta de 20 e poucos anos, cabelos pretos, barba por fazer e um corpo em necessidade, física e mental, acabou por abaixar o braço, olhou para o chão, se encostou na parede do beco que ele havia me levado e se deixou cair na sujeira, chorando fracamente e aumentando de volume.
    Eu olhei para ele com pena e fui até onde ele estava. 
    - Dê-me a arma, jovem.
   Não foi preciso dizer mais de uma vez; ele, com o rosto entre as pernas e o colo, me entregou a arma de bom grado. Abri o tambor e vi 5 dos 6 espaços ocupados por balas. Uma faltava. Então eu estava enganado sobre ele, ele já havia matado antes.
  - Eu não matei ninguém, jamais - ele acabou dizendo, ainda chorando, agora com menos intensidade, como se tivesse lido meus pensamentos. - Me deram a arma e eu atirei uma vez numa garrafa só pra sentir o... o...
    - Poder? - eu sugeri.
    - O poder - ele confirmou. - Eu... eu nunca pensei em fazer algo disso antes, senhor, eu juro. Só...
   Ele havia levantado a cabeça e vi novamente seu rosto, desta vez todo vermelho e inchado pelas lágrimas. Ele estava assombrado pelo próprio ato.
    - Garoto, eu não me importo pelo motivo que te levou a tentar fazer aquilo, mas fico feliz de não ter feito.
    Ele me olhou com um olhar estranho e perguntou:
     - Mas... mas o senhor disse que estava pronto para morrer. Era só um truque?
   - Não - respondi prontamente - não, nada disso. O que eu disse era verdade. Há tempos já fiz minhas pazes com a vida. Amei e fui amado. Tive meus filhos, meus netos. Trabalhei em algo que sempre me agradou. Comi as comidas que eu gostava, vi filmes que eu queria ver, ouvi músicas tão maravilhosas que nem saberia descrever. Vivi excelentes momentos junto com as pessoas que eu me importava; minha família, meus amigos, meus colegas de trabalho. Mas já estou velho, muitas dessas pessoas já se foram e um dia eu simplesmente acordei e percebi que, um dia, eu poderia rever todo eles em algum lugar. Não senti medo de que fosse tirado deste mundo.
   - Você sabia que eu não ia atirar...
   - Ah, sim. Sabia.
   - Como?
   - Seus olhos. Eles gritavam por ajuda e diziam, ao mesmo tempo: este não sou eu.
   Ele recomeçou a chorar.
   - Como eu disse: não me importo por que tenha quase feito o que fez. E eu poderia ter aceitado a morte numa boa, apertado os botões certo em você e ter feito você descontrolar sua raiva, mas isso seria errado porque isso te mataria também.
    - Mata...ria?
    - Sim. Mataria sua alma, seu espírito. Você já não poderia ser quem sempre quis ser. Seria mais um jovem perdido que matou um velho por causa de alguns trocados. 
    Olhei para o relógio e vi que era mais de meia noite.
    - Vou fazer o seguinte: vou te dar o dinheiro e até mesmo meu relógio, mas você me dará sua arma em troca.
    Ele parece não entender o que eu tinha acabado de dizer.
    - Pra que você quer a arma...? Não me diga que você...
    - Não, seu otário! Não é porque estou de bem com a morte que eu vou acelerar o processo e sujar o tapete da sala! Imagina só a bagunça! Só me dê a arma e faça o que eu disser. Eu te darei o dinheiro e o meu relógio, certo?
    - ...certo.
    Eu disse o que ele deveria fazer e ele chorou ainda mais. Ele se levantou, me abraçou, pegou meu dinheiro e meu relógio, e me deu a arma. Ele saiu do beco antes de mim, olhou para mim segurando a arma, deu um meio sorriso e se foi.
    Segurei a arma com minhas duas mãos, sentindo o poder que ela trazia. Um disparo, uma morte, um corpo a mais apodrecendo e sendo quebrando em minúsculas partículas. Acabei a guardando num bolso interno do meu casaco. Ninguém repararia. Então saí do beco e segui para casa.

    No dia seguinte, indo para o trabalho, estacionei no terreno arenoso perto de uma das pontes e saí do carro. Tirei a arma do meu casaco, pegando-a novamente com as duas mãos. Senti seu poder, novamente. Olhei para o céu, onde o sol dava suas caras mais uma vez, e depois para a água, que refletia alegremente o tom de laranja do sol. Peguei a arma com minha mão direita e a joguei em direção à água.
    Entrei no carro, pronto para seguir com mais um dia, pensando se aquele jovem havia me escutado.

    Anos depois, enquanto estava internado devido a um súbito problema cardíaco, um homem de cabelo bem cortado, alto, sem barba e de terno (daqueles que te vestem bem) e gravata, apareceu no meu quarto. Ele havia aparecido no horário de visitas e não era nenhum dos meus filhos ou netos... Demorei para reconhecer seus olhos. Não consegui me impedir de dar um sorriso e rir um pouco.
    - O filho pródigo a casa torna. Não pensei que iria te ver novamente, garoto.
    Ele se apoiou no batente da porta.
    - O pensamento é mútuo.
    Rimos um pouco.
   - Ouvi dizer que você vai bater as botas logo - ele disse. - Ainda preparado?
   - Mais preparado do que nunca. Ha. Faz quantos anos? Uns 3?
   - 3 anos e 5 meses. 
   - Ha. Você contou o tempo.
   - É o tempo que eu ando longe de encrencas. Bom... daquele tipo de encrencas, pelo menos.
   Ele acabou abandonando o batente, pegando uma das cadeiras e movendo para a frente da minha cama.
   - Eu fiz o que você mandou. Segui correndo para a estação de metrô e consegui pegar o último que ia pra minha casa. Coisa de segundos antes das portas fecharem. Desci na estação, peguei um táxi com o dinheiro que você me disse e parei em frente à porta de casa. Chorando, bati na porta. Quando meus pais abriram, eles quase me mataram com o tanto que me abraçaram - ele riu. - Eles haviam perguntado o que havia acontecido e eu resolvi dizer a verdade, como você disse também. Acho que nunca fomos tão unidos. Meu irmão e a mulher dele foram para lá dois dias depois e eu nunca fiquei tão feliz de estar junto deles, até mesmo daqueles filhos endiabrados dos dois.
   Ele fez uma pausa, olhando para o relógio, o mesmo relógio que eu havia dado para ele há três anos naquele beco sem saída.
   - No começo, fiquei um pouco perdido com todo aquele mundo abrindo para mim novamente, mas acabei me achando. Voltei para a faculdade e me formei um ano e meio depois. Consegui um bom trabalho com a ajuda do meu pai e fiquei noivo algumas semanas atrás. Ela está aqui, aliás. Querida! - ele gritou - venha aqui.
    Ele chegou perto e me confidenciou
   - Disse para ela esperar lá fora enquanto conversava em privado com você e depois eu a chamava.
   Uma jovem sedutora de uns 20 e tantos anos apareceu na porta do meu quarto. Ela era morena, com olhos de gato, nariz fino e lábios sorridentes. Ela era linda.
   - Essa é a minha noiva, Elizabeth. Nos conhecemos quando voltei para a faculdade e estamos namorando desde então.
    - Eddie me falou muito bem do senhor - ela disse com uma voz angelical. - Quando soubemos que estava no hospital, Eddie chorou de tristeza e já estava pronto para sair de casa e vir te visitar. Isso era umas 2 da manhã.
    Eu precisei rir disso.
    - Como souberam? - eu perguntei.
  - Minha irmã é uma das suas enfermeiras - disse a noiva. - Eddie vem te procurando há meses querendo dizer tudo que aconteceu a ele, mas apesar dele ter seu sobrenome e ele ser um tanto incomum, o senhor pareceu desaparecer na face da Terra. Ele tinha isso e um rosto para se lembrar. A história já é uma velha conhecida na família dele e na minha. Então, minha irmã acabou me ligando dizendo que você estava aqui, que ela tinha certeza que era você. Cancelamos nossos compromissos e pegamos o primeiro avião para cá.
   - Eu precisava te mostrar o que aquela noite havia feito à minha vida e como sou grato de ter te conhecido. Ficaremos por aqui o tempo que for necessário.

     Três noites depois deles terem aparecido pela primeiras vez, eu estava dormindo e tive um sonho onde um jovem com olhos tristes e assustados me apontava uma arma e queria meu dinheiro. Ele acaba não atirando em mim e escuta o antigo conselho de um velho.
    "Pegue o dinheiro e corra para a estação. Acho que você ainda consegue um metrô. Vá para casa. Use o que sobrar do dinheiro e vá para casa, para sua família. Eles saberão como te ajudar. Não se importe com as consequências de seus atos passados, seja apenas sincero com seus pais e tenho certeza que eles não te chutar pra fora. Mas diga a verdade a eles. Não há nenhuma covardia ou fraqueza em dizer a verdade, dizer que errou, dizer que os ama e que teme morrer aqui. Volte a estudar. Você me parece um garoto esperto. Vá atrás de seus sonhos. Conheça uma boa garota, chame-a pra sair sem medo. Ame-a e deixe-a te amar. Corra pra estação e viva."
    "Senhor, eu nem sei seu nome..."
    "Senhor Mori para você. Agora vai. Vá!"

    Depois disso, senti um calor se aproximando de mim e a escuridão de meus olhos fechados ficou mais escura. Senti a presença de pessoas há muito tempo me conhecidas e depois tudo clareou. O calor me abraçou e não consegui resistir a tentação de devolver o abraço e ser embalado por aqueles braços que pareciam que irão sumir a qualquer instante. Tudo clareou. Tudo clareou. E finalmente eu vi.

Então, era assim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário